quinta-feira, 10 de maio de 2012

O QUE É A DISCALCULIA DO DESENVOLVIMENTO?


Um grande número de crianças, adolescentes e adultos têm atitudes negativas em relação à matemática. Em muitos casos, as atitudes negativas podem estar relacionadas à fobia ou ansiedade matemática, podendo, inclusive, ser atribuídas a experiências traumáticas com a aprendizagem desta matéria. 

Uma parcela significativa de crianças em idade escolar apresenta, entretanto, dificuldades persistentes na aprendizagem da matemática. Quando as dificuldades persistentes na aprendizagem da matemática não podem ser atribuídas a fatores extrínsecos, tais como déficits intelectuais, neuromotores ou neurossensoriais, nem a dificuldades emocionais, falta de estimulação ou experiências educacionais inadequadas, é realizado o diagnóstico de transtorno específico de aprendizagem da matemática (CID-010 F81.2) ou discalculia do desenvolvimento. 

A discalculia do desenvolvimento compromete cerca de 3% a 6% da população em idade escolar,
sendo diagnosticada com base numa avaliação neuropsicológica criteriosa que exclui a influência primária de fatores extrínsecos. Além da exclusão da influência primária de outras causas, o diagnóstico de discalculia do desenvolvimento exige que o deficit seja grave e persistente.
A gravidade pode ser avaliada por meio de teste padronizados de desempenho escolar, tais como o TDE (Teste de Desempenho Escolar). Diversos critérios podem ser adotados. Geralmente o desempenho deve situar-se abaixo do percentil 5 ou deve haver uma discrepância de dois anos, entre o nível de desempenho da criança e o nível escolar que frequenta. Um outro critério frequentemente adotado, é que deve haver uma discrepância de 1 a 2 desvios-padrões entre o desempenho em matemática e a inteligência da criança. 

A persistência das dificuldades é caraterizada pela sua observação em dois momentos distintos com um intervalo de pelo menos um ano, ou então, pela ausência de resposta satisfatória a intervenções psicopedagógicas bem planeadas e bem conduzidas. 

A discalculia do desenvolvimento deve ser diferenciada de uma outra categoria frequente utilizada em pesquisas, as dificuldades de aprendizagem em matemática. Muitos pesquisadores investigam o desempenho de crianças com dificuldades em matemática, geralmente abaixo do percentil 25 ou até mesmo do percentil 35, sem caraterizar mais precisamente a etiologia e as características cognitivas associadas. Muitas das crianças com dificuldades de aprendizagem da matemática apresentam discalculia, mas nem todas. As pesquisas ainda não identificaram se existem diferenças qualitativas de desempenho aritmético e cognitivo entre as crianças com dificuldades de aprendizagem da matemática e aquelas com discalculia. 

A discalculia do desenvolvimento consiste, fundamentalmente numa dificuldade crônica básica de aprender a aritmética. Os sintomas geralmente se manifestam já na idade pré-escolar, quando a criança tem dificuldades para aprender a contar, bem como utilizar outros conceitos numéricos ou relacionados com a nomeação de quantidades. Além da dificuldade com a contagem, a criança pode ter dificuldades com a aprendizagem dos conceitos (quantificadores) de mais e de menos, pouco ou muito, antes e depois, com a aquisição das noções de tempo e, muitas vezes, também com as noções de espaço. 

Uma das características principais dos indivíduos com discalculia é a dificuldade de aprender a tabuada. Algumas crianças simplesmente têm muita dificuldade para memorizar os fatos aritméticos. Estas crianças persistem contando nos dedos, mesmo quando isto não é funcional. Quase todas as crianças aprendem a contar nos dedos. Mas, depois de um certo tempo, a contagem nos dedos é indicativa de dificuldades.



A aritmética é uma área do conhecimento organizada hierarquicamente. A aquisição de novos conhecimentos em aritmética, depende da consolidação de conceitos e procedimentos previamente adquiridos. As dificuldades na aquisição dos princípios da contagem retardam a intuição das operações aritméticas elementares. A adição é inferida a partir da contagem. A adição corresponde a contar dois conjuntos em sequência. As outras operações são todas derivadas da adição. A multiplicação consiste numa adição repetida, enquanto a subtração corresponde ao inverso da adição, etc. A dificuldade na aquisição da tabuada é extremamente incapacitante, muitas vezes impedindo que o indivíduo progrida na aquisição de conceitos e procedimentos mais complexos, tais como o valor posicional, essencial à aquisição do sistema arábico, ou dos algoritmos de cálculo no sistema arábico. 

Os dados de pesquisa indicam que a discalculia do desenvolvimento é uma característica intrínseca ao indivíduo e não resultado da ação de outros fatores. Mesmo em famílias, vivendo sob condições de privação cultural, económica e afetiva é possível identificar algumas crianças que apresentam dificuldades de aprendizagem na aritmética enquanto os seus irmãos têm um desempenho adequado. Estudos com gémeos também mostram que a hereditariedade da habilidade aritmética é alta. Estudos com indivíduos portadores de síndromes neurodesenvolvimentais mostram que o fenótipo de muitas síndromes adquiridas ou genéticas se caracteriza por dificuldades relativamente específicas na aprendizagem da aritmética. Estudos com neuroimagem estrutural e funcional em indivíduos com síndromes cujo fenótipo se caracteriza por discalculia mostram que as dificuldades de aprendizagem da matemática podem ser atribuídas a alterações na estrutura e função de regiões do córtex parietal, bilateralmente. As lesões destas áreas do córtex parietal, principalmente o sulco intraparietal bilateralmente mas também o giro angular esquerdo, são responsáveis pelo surgimento de acalculia em adultos com lesão cerebral. Ou seja, pela perda da habilidade de processar números e calcular. 

Os estudos de neuroimagem funcional em crianças com discalculia do desenvolvimento não-assocaida a síndromes também mostram alterações funcionais nas áreas do córtex parietal e suas conexões. Os dados neuropsicológicos, neurocognitivos, a associação com síndromes genéticas e os estudos da hereditariedade das habilidades aritméticas indicam, portanto, que a discalculia do desenvolvimento é uma entidade neurobiologicamente baseada e de origem genética e não uma consequência exclusiva da experiência de vida. 

A influência de fatores genéticos não exclui a importância de fatores ambientais, tais como a estimulação pela família, a qualidade da educação ou a atitude do indivíduo em relação à matemática. Na psicologia e medicina contemporâneas se trabalha com um modelo etiológico denominado epigenético. Ou seja, as caraterísticas fenotípicas individuais, inclusive a sua personalidade e habilidades cognitivas, são o produto de um complexo processo de interação entre influências genéticas e ambientais. 

O diagnóstico de discalculia do desenvolvimento é extremamente importante. É apenas através do diagnóstico correto que se torna possivel planear e implementar as intervenções necessárias para prevenir ou minorar as consequências negativas da dificuldade em matemática. 

Cerca de dois terços das crianças com discalculia apresenta co morbilidades, ou seja, a presença simultânea de outras condições neurodesenvolvimentais. As principais comorbilidades são o transtorno do déficit de atenção por hiperatividae (TDAH) e as dificuldades de aprendizagem da leitura e escrita (dislexia e disgrafia do desenvolvimento). A comorbilidade com TDAH indica que deficits nas funções executivas e na memória de trabalho podem ser implicados nas dificuldades. Por outro lado, a associação com dislexia sugere que, em parte, as dificuldades podem ser atribuíveis a deficits no processamento fonológico, principalmente na consciência fonémica. 

A pesquisa sobre os mecanismos cognitivos na discalculia é uma questão complexa, desafiadora e extremamente relevante do ponto de vista prático. A relevância clínica, educacional e social da discalculia indica que mais pesquisas são necessárias para identificar as suas causas, desenvolver métodos de diagnóstico e reconhecimento precoce e, principalmente, programas eficientes de intervenção para reverter ou minorar as dificuldades ou seu impacto. O desenvolvimento de métodos de diagnóstico e intervenção eficazes requer uma estreita colaboração entre profissionais de saúde e educadores. 


Autor: Vitor Geraldi Haase
Coordenador do Laboratório de Neuropsicologia do Desenvolvimento
Departamento de Psicologia
FAFICH – UFMG

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